terça-feira, 23 de setembro de 2008

Um
- "E seu nome era Emmelyn Wilson"

"Quando o vínculo se desfaz..."


M
anhã cinzenta de segunda-feira. Dia comum.

Em um bairro nada chamativo, um rapaz adentrou nas ruínas de um prédio abandonado. Ninguém aparecia para arrumar o lugar, embora o letreiro informasse o contrário havia meses.
O rapaz tinha um ar inegavelmente doentio. Magro como quem crescera muito em pouco tempo, a pele descorada e ressecada. Os ossos da face eram claramente visíveis sob a pele repuxada, e as olheiras ao redor dos olhos esbugalhados denunciavam ausência de saúde. Os olhos, por sua vez, estavam injetados e percorriam o local rapidamente, como se o dono deles estivesse assustado. Se não estivesse em pé, alguém tomaria o jovem por um monte de trapos particularmente sujos, tal era o estado de suas vestes escuras. Contudo, nada na aparência do jovem parecia incomodá-lo.
- Então - um voz saiu repentinamente das sombras - você está aqui.
A velocidade com que o jovem virou-se foi tanta que tropeçou em alguma pedra perdida e por pouco não caiu. Um vulto deu um passo à frente, deixando sua silhueta revelar-se à meia-luz que penetrava nas frestas dos destroços.
- Alguém o seguiu? - perguntou.
O rapaz balançou negativamente a cabeça.
- Tem certeza?
- T-tenho.
Por alguns instantes, somente a respiração rápida do rapaz fez-se ouvir. Finalmente, seu interlocutor misterioso tornou a falar:
- O de sempre, suponho?
- S-sim... - respondeu o garoto, hesitante.
Sua hesitação não passou despercebida; o vulto encarou-o brevemente antes de indagar:
- Algum... problema?
- N-não!
Silêncio. Tensão. Os músculos do jovem tremendo. Frio?
- Você tem certeza de que ninguém o seguiu, jovem Brad?
- S-sim!
- Você não quer que eu pergunte isso novamente, quer?
O tom do homem não era exatamente ameaçador. Havia um certo ar de riso, como se ambos estivessem conversando descontraidamente em um bar sobre algo um tanto óbvio. O rapaz, porém, continuava assustado, ligeiramente trêmulo.
- Qual é o problema, Brad? - perguntou o outro, a voz repentinamente despida de emoção.
O garoto inspirou profundamente.
- Eu não tenho tudo... para pagar.
- Sem grana não há acordo. O que veio fazer aqui, então?
- Queria negociar! - disse Brad rapidamente, como se estivesse se livrando de uma carga particularmente pesada - Não tenho tudo, mas boa parte... acho que dá pra negociar!
Silêncio.
- Quanto? - a voz do outro lado, um tanto quanto fria, exigiu saber.
- 150.
- 25 por cento de desconto?! - repetiu o outro, incrédulo - Nem pensar!
- Não é pouco! Suei para conseguir isso, cara, alivia, vai...
- Você sua do seu lado, eu suo do meu. Não é fácil conseguir a mercadoria, cara. Eu preciso de uma compensação! Isso aqui vale mais que 150 mangos...
- Só dessa vez, mano! Alivia ae... eu realmente preciso dela...
Havia súplica em sua voz. Nada que comovesse o outro; este já estava acostumado às súplicas. Quanto mais fiéis tornavam-se os clientes, mais imploravam por um preço melhor... ele sabia que eram clientes fiéis e estavam dispostos a tudo... estavam em suas mãos...
- O preço já estava combinado. 200. Preço de amigo.
- Alivia aê... eu preciso muito...
Um sorriso invisível naquele lugar parcialmente iluminado brincou num dos cantos dos lábios do homem.
- Precisa?
- Nem consegui dormir ontem. Não agüento ficar em pé, cara... tô doendo todo... preciso dela...
O homem sorriu novamente. Tolos... como viver sem uma noite decente de sono? Provavelmente o rapaz passara a noite conseguindo as cédulas que agora sacudia para seu vendedor... enquanto ele, o vendedor, dormira muito bem debaixo de seus quentes cobertores de cor vinho... ao pensar nisso, uma jóia dourada pareceu cintiliar no anelar direito.
- Então podemos negociar... faço por 200... você me paga 75 por cento agora, leva a mercadoria e me paga da próxima vez o resto.
- Feito! - concordou Brad imediatamente. - Sabia que podia contar contigo, companheiro!
O outro gargalhou e estendeu as duas mãos, uma para receber e a outra para entregar; Brad fez o mesmo. A atmosfera, de repente, tornou-se mais leve; ambos sorriam.
- Ótimo. - disse uma voz feminina autoritária. - Agora não se mexam.
O sorriso em ambas as faces dissipou-se. O "vendedor" virou-se instantaneamente, recuando de costas e aproximando-se de Brad, que rgueu as mãos quando um dos feixes de luz iluminou os silenciadores de duas pistolas.
- Emma? - perguntou o "vendedor"; pela primeira vez, sua voz parecia surpresa.
Um passo foi suficiente para o maior feixe iluminar o rosto da mulher, emoldurado por cabelos castanho-claro na altura do queixo. Embora apontasse as armas para as duas pessoas, olhava apenas para o homem; parecia, no mínimo, decepcionada.
- Quatro meses. Quatro meses nessa missão, Dave. E, finalmente, uma pista.
Brad tremia, olhando de um para outro.
- Meu amor - começou Dave - Não é o que você está...
- Calado! - ordenou Emma, alteando a voz - Está tudo gravado. Deixe de mentir ao menos uma vez!
Dave estava a meio caminho de falar algo, mas mudou de idéia, contentando-se em fechar a boca. A mão que segurava a pistola apontada para seu peito exibia uma aliança fracamente iluminada por uma fresta.
- Quatro meses tentando descobrir quem era a quadrilha, atrás de alguma pista, alguma prova... e você era um deles, Dave. O tempo todo. Me fazendo de boba.
- Eu não estava fazendo você de boba! Espere, deixe-me explicar! - acrescentou o homem, diante de uma risadinha de desdém da mulher - Emma, me escute!
Inclinando ligeiramente a cabeça, a mulher encarou-o com desprezo.
- Eu não a estava fazendo de boba. Eu pensava em você... em nós! Mas eu sabia que, se você descobrisse, não ia gostar, porque você trabalha justamente... mas, se você abrir sua mente e analisar por um outro ângulo, verá que não faço nada de errado! Sou um negociante. Faço vendas, como proprietários de lojas de calçados, sorveterias...
- Você é membro de uma quadrilha de narcotráfico, Dave, e dificilmente sairá da roubada em que se meteu, e sabe por quê? Porque você infringiu a lei. - retorquiu Emma, sublinhando as últimas palavras, visivelmente desgostosa.
- Não faço apenas o que a lei manda, Emma, e sim o que penso ser justo. Veja bem, o jovem Bradley me procurou! Ele se interessou pelo que eu vendia e quis comprar! Ora, por favor - acrescentou, diante de um muxoxo de impaciência - Estamos no país mais consumista do mundo, Emma!
Emma não conseguia acredita no que ouvia.
- O garoto tem nas mãos um pacote de drogas, Dave. DROGAS! Vendidas por você.
- Se fosse uma bebida ou um cigarro, você não criaria caso por isso. Nem você e nem a agência onde trabalha... Emma, será que não percebe? É uma mina de ouro. Você pode me prender agora, se quiser, mas pode também esquecer essa história e casar-se comigo. O dinheiro que esse negócio vale, você não imagina! Podemos nos casar, podemos ter tudo o que quisermos, o que me diz?!
Enquanto falava, Dave baixou as mãos, talvez enfiando-as nos bolsos. Emma, por sua vez, abaixou os braços, as armas ainda em posição. Quando falou, não havia nenhum resquício de zanga ou ironia; era decepção:
- Dave, não vamos nos casar. Qualquer coisa que eu tenha sentido por você acabou no instante em que o vi entregando isso ao menino. Vocês dois estão presos e têm o direito de permanecerem calados. Queiram me acompanhar.
- Pense, querida... pense direito...
O rapazinho suava frio, intimamente desejando que Dave a convencesse.
- Eu já disse, Dave. Não!
- É uma pena... - suspirou Dave, olhando para cima por alguns segundos - Nesse caso, terá que atirar em mim, porque não vou apodrecer na cadeia.
Silêncio. As mãos tremiam, as pistolas erguidas.
- Vamos... ATIRE!
Os segundos vieram e foram; o silenciador nada silenciara, pois não havia o que ser silenciado.
- Tsc tsc tsc... Emma, querida... de que adianta saber atirar... se você não o faz?
Os segundos seguintes foram tão tensos quanto os anteriores; desta vez, contudo, tinham razão em sê-lo. Retirando uma das mãos das vestes, Dave apontou-a para Emma; Brad reconheceu os contornos de um revólver - e o ruído a seguir foi bem maior que um tiro.
Uma das paredes dos destroços, foi ao chão, espalhando pedaços de madeira para todos os lados, e o barulho coincidiu com um tiro que fez Brad mergulhar no chão em um ato primitivo para sobreviver; gritos ecoaram, e vozes sobrepuseram-se ao caos:
- PRENDAM-NO!
Brad abriu os olhos; uma vez detonada uma parede, a luz penetrava com mais facilidade, revelando vultos que adentravam pelo local. Um deles, de cabelos pretos, estava caído ao seu lado, segurando um dos braços que sangrava; a tal Emma ainda estava em pé, as mãos juntos ao corpo, olhando para Dave com os olhos arregalados. Atrás dela, policiais cercavam a área. Um deles, o autor do tiro, dava ordens.
Emma viu alguns de seus companheiros erguerem Dave e o garoto, o rosto impassível.
- Bom trabalho, Emma. - o tenente Taylor deu-lhe um tapinha nas costas - O chefe vai gostar de saber.
- Eu... não atirei. Eu nunca hesitei em atirar, Nick.
- Era seu noivo, Emma. É normal.
- Não, não é. Ele quase me matou.
- Ele não faria isso; estávamos preparados.
Emma sorriu levemente.
- Belo tiro.
Nick deu-lhe outro tapa e afastou-se. Emma, guardando finalmente as armas, olhou para a mão direita e retirou a aliança. Leu a inscrição gravada dentro dela:

"David M. Adams"

Sentindo um assomo de raiva, atirou a aliança ao chão. Pensou nas inscrições da outra aliança.

Emmelyn Wilson.

Seu nome era Emmelyn Wilson. Apenas Wilson.