sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Dois

- O armário e o sonho --

"Quando o monstro está fora do armário..."

Oito e meia da manhã no relógio do balcão e devorava o café calmamente na cozinha, apanhando tudo que estava ao seu alcance. As mãos brancas com unhas negras e compridas fecharam-se ao redor da caneca de chocolate quente, como uma pinça, e a viraram na boca. Passos eram ouvidos pela casa toda, bem como as vozes.
- Céus, onde estão as chaves? - perguntou uma voz em algum canto do andar superior.
Ergueu os olhos. Ouviu passos bem acima de sua cabeça.
- Na primeira gaveta, querido. - respondeu uma voz feminina no cômodo ao lado da cozinha.
Uma voz roufenha e feminina aproximou-se:
- ... e se o jardineiro continuar desse jeito, vou perder minhas begônias, Liz!
- Eu já entendi, mamãe, e se a senhora não estiver satisfeita, poderia a senhora mesma cuidar delas? Eu não entendo nada de jardinagem.
Nesse instante, uma segunda pessoa adentrou na cozinha; era uma mulher alta e elegante, de cabelos louros e curtos e ar eficiente. Uma senhora mais baixa e gorda, de coque e óculos pequenos, a seguia feito cão raivoso.
- Então eu vou ficar de olho, não é possível que o Perkins seja tão relapso...
Liz parou enquanto a velha falava e olhou para a única ocupante da mesa, que lhe devolveu o olhar.
- É melhor você se apressar, Rachel, ou vai perder o ônibus. Ed não pára de falar que o seu irmão sumiu pela casa... vá atrás dele e tratem de não se atrasar!
Rachel assentiu enquanto abocanhava um biscoito. Liz apanhou algumas chaves na mesa e, olhando a filha uma segunda vez, acrescentou:
- Eu me envergonharia de ir à escola com trajes de Halloween, querida. Vá lavar esse rosto. - e retirou-se apressadamente, enquanto a velhota atrás clamava contra a moda juvenil atual.
Rachel apenas deu de ombros e ergueu-se. A caminho do banheiro, para escovar os dentes, não viu nem sombra do irmão, e tinha certeza de que os passos apressados no andar de cima não pertenciam a ele.
No banheiro, enquanto escovava os dentes, encarou a imagem de uma moça de rosto comprido e oval e cabelos muito negros e lisos. Nos olhos havia uma pesada maquiagem negra, e o batom cor de vinho contrastava com a pele muito branca. Trajava vestes muito negras e objetos de prata, como pulseiras e crucifixos; até concordava com a mãe sobre parecer uma pessoa fantasiada para o Halloween, mas o que podia fazer? Gostava de andar assim.
Ao terminar de escovar os dentes, chamou:
- Mike!
Não houve resposta. Ouviu os mesmos passos apressados de antes descerem as escadas, e um vulto alto e forte caminhou rumo à sala, chamando por Liz. Ignorando-o, Rachel subiu pelas escadas até o segundo andar supostamente deserto. Os ruídos provocados pelos três adultos no andar de baixo distanciaram-se.
- Mike? - chamou.
Silêncio absoluto. Quando pisou no tapete do corredor, seus passos deixaram de ecoar. Não escutava um único ruído naquele andar; uma porta abrindo-se no andar de baixo causou-lhe um arrepio.
Escolheu um quarto e entrou nele. Era um quarto visivelmente masculino, com uma cama desarrumada de quem acordara havia pouco tempo, um computador, uma televisão e vário brinquedos espalhados por todos os lados, bem como alguns livros fora da estante. Nada, contudo, se mexia ali.
Olhou para o guarda-roupa grande e fechado. Caminhou até ele, as botas atritando no tapete. Ouviu um ruído mínimo em um canto do armário; com naturalidade, escolheu duas portas e abriu-as de uma vez.
Algumas roupas penduradas haviam sido empurradas para um canto; dois ou três pares de tênis jaziam no chão do guarda-roupa, jogados, e seu lugar - o espaço sobre as gavetas - fora ocupado por um garoto pequeno de cabelos acobreados e lisos, que se encolhera ali dentro abraçando as pernas. Ao ver-se descoberto, ergueu os olhos com olheiras de nascença para Rachel, mas nada disse. Não pareceu constrangido e nem amedrontado; parecia tão natural quanto a garota ficara ao descobri-lo.
- Achei que estivesse aqui. - disse Rachel.
O garoto não disse nada. A irmã continuou:
- Edgard estava procurando você. Ficou preocupado, disse para não nos atrasarmos, e mamãe concorda com ele.
Mike assentiu. Rachel franziu ligeiramente a testa, como se o compreendesse. O tom de voz habitual foi substituído por um mais baixo e surpreso ao indagar:
- Aconteceu alguma coisa, Mike?
- Eu tive um pesadelo.
Instantes de silêncio.
- Que tipo de pesadelo? - perguntou Rachel, assombrada.
Tão baixinho quanto antes, imitando a irmã, Mike respondeu:
- Sonhei que Edgard estava nos perseguindo. Ele queria... nos matar.
Rachel apertou os olhos, espantada e ligeiramente curvada para escutar melhor o irmão. Quando este terminou de falar, a garota se recompôs.
- Mike, eu sei que a morte do papai foi difícil... mas olhe só... Edgard jamais faria algum mal a nós. Mamãe não deixaria.
Nesse instante, um homem engravatado entrou no quarto, ofegante, sobressaltando Rachel.
- Ah, você está aí! - exclamou, dando alguns passos em direção à garota - Você viu Michael, eu estava justamente...
Foi quando olhou para o guarda-roupa e avistou o garotinho. Surpreso, sorriu.
- Brincando de se esconder, é? Bom, trate de sair daí e ir para a escola... não se atrasem! E eu já estou atrasado. - acrescentou, consultando o relógio de pulso e retirando-se do quarto a largos passos. Rachel e Michael o ouviram descer as escadas.
- Certo. - disse Rachel, tornando a encarar o irmão - Pegue a sua mochila e vamos esperar o ônibus. Acho que ele já vai passar.
E a garota também saiu do quarto. Michael, entretanto, sequer se mexeu; apenas olhou para baixo, exatamente onde a irmã estivera segundos antes, a voz dela ainda ecoando em seus ouvidos.
"Edgard jamais faria algum mal a nós. Mamãe não deixaria."
Mal sabia ela que, no sonho, a mãe deles jazia exatamente onde Rachel estivera. Morta.







Um comentário:

Unknown disse...

Tem um certo blog precisando ser atualizado... =D

Beijos! o/